por Ailton Magioli - EM Cultura
Sem tempo para comemorar o próprio aniversário devido à extensa agenda de compromissos, Milton Nascimento recebe pouquíssimos convidados hoje à noite, em sua casa da Joatinga, no Rio de Janeiro, para festejar seus 70 anos. Amanhã, ele embarca para Pirenópolis (GO), onde faz show no domingo. Depois, segue para Cuiabá (MT).
Bituca não completa apenas 70 anos de idade, mas meio século de carreira, 45 anos da canção Travessia e quatro décadas do disco Clube da Esquina, marco da MPB. Em 25 de novembro, grava o DVD Milton Nascimento – Uma travessia, no Rio de Janeiro. E prepara repertório inédito para seu disco com o guitarrista Ricardo Vogt, que toca na banda de Esperanza Spalding. Ele será um dos homenageados da Academia Latina de Gravação durante a entrega do Grammy Latino, em 15 de novembro, em Las Vegas (EUA).
Carioca de nascimento, criado em Três Pontas e mineiro por direito, Bituca tem se emocionado neste ano especial. “Fico muito feliz de poder dividir com as pessoas as músicas que a gente fez, as histórias que a gente viveu”, declarou ele. Vêm por aí dois livros sobre o artista: a biografia musical escrita pelo instrumentista e compositor Chico Amaral e o volume organizado pelo assessor Danilo Nuha, com as letras que escreveu. No Rio de Janeiro, o Instituto Antônio Carlos Jobim cuida da digitalização de seu acervo pessoal. Recentemente, Milton recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade do Estado de Minas Gerais.
Chico Amaral recorre a Mário de Andrade para situar o surgimento de Milton Nascimento na cena cultural brasileira. “Mário gostava de dizer que o que importa na arte é o contexto, o coletivo. É isso que gera os grandes gênios”, lembra o compositor, salientando que depois de Três Pontas, onde conviveu com Wagner Tiso, Bituca se mudou para BH, onde conheceu Pacífico Mascarenhas e os irmãos Borges, entre outros. Já radicado em São Paulo, ele foi acolhido por Hamilton Godoy (do Zimbo Trio), Agostinho dos Santos, Baden Powell e Elis Regina. Chico garante: depois da bossa nova, Milton Nascimento representa o que surgiu de mais importante na MPB.
Autor dos livros A canção no tempo (1997-1998), em coautoria com Jairo Severiano, e A era dos festivais (2003), o jornalista e musicólogo Zuza Homem de Mello lembra que Milton – como compositor – foi a figura de maior projeção do Clube da Esquina. “Todavia, sua obra tem personalidade tão marcante que se pode afirmar constituir-se de forma independente do grupo em função de suas inovações rítmicas, harmônicas e melódicas”, ressalta. Para Zuza, tais inovações constituem “verdadeira entidade musical, diferente de tudo o mais que existia e existe na música brasileira”.
O jornalista aponta na obra miltoniana “aspectos únicos, como o caráter ritualístico, a morfologia épica e a abrangência latino-americana que extrapolam a força da paisagem mineira, constituindo-se num dos mais fascinantes universos sonoros de raízes profundamente brasileiras que o mundo não só admira como, e principalmente, compreende”. Zuza também destaca a postura de Bituca na luta contra a ditadura militar: “Nesse ponto, há que se louvar os parceiros – em particular Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos. Eles souberam compreender os desígnios musicais embutidos em certas criações para chegar a canções que atingiam fundo esse enfrentamento, como Fé cega, faca amolada e Nada será como antes, entre várias outras”.
O jornalista discorda de quem afirma que Bituca impressionou a crítica apenas por seu famoso vozeirão. “O que arrebatou aos que ouviram Milton desde o início de sua carreira, entre os quais me incluo, foi a verdadeira magia que havia em sua voz, a devoção de suas vocalizações, a apropriação técnica no uso de falsete. Enfim, várias características que fazem dele, cronologicamente, o intérprete mais original do Brasil depois do surgimento de João Gilberto. A mitologia de ambos converge num ponto em que se identificam, na valorização do silêncio”, conclui.
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